Autor: Romero Venâncio
INTRODUÇÃO
Entre a filosofia existencial de Soren Kierkeggard e o cinema de Ingmar Bergman e Carl Th. Dreyer existe uma “afinidade eletiva” que acontece na forma de tratar a trama humana do existir e na estrutura formal de incorporar alguns elementos da filosofia do pensador dinamarquês nas películas. Na abordagem de um grupo específico de temáticas, fica claro as relações entre o filósofo e os cineastas escandinavos: a existência ou não de Deus; a morte; a culpa; a experiência da crise; a escolha; a angustia; a fina ironia... Seguindo uma preciosa observação do pensador canadense Charles Le Blanc, de que existem verdades nas quais temos de comprometer a nós mesmos e tão essenciais que a existência é incompreensível sem elas, podemos situar as obras de Bergman/Dreyer e Kierkegaard num paralelo constante.
O nosso trabalho está dividido em duas partes: na primeira, apresentamos uma breve leitura de algumas categorias da filosofia de Kierkegaard que terão relevância na compreensão do cinema de Bergman. Na segunda, destacamos da obra do cineasta sueco a chamada “trilogia do silêncio” (O silêncio; Através de um espelho; Luz de inverno) e dois filmes do dinamarquês Carl Dreyer (O martírio de Joana D´arc e A palavra). Nessas obras dos cineastas escandinavos procuramos trabalhar uma perspectiva de filosofia da existência de forte influencia do pensador dinamarquês.
1.NOTAS SOBRE A FILOSOFIA DE KIERKEGAARD COM INTERESSE EM BERGMAN E DREYER
Lendo as obras de Kierkegaard, uma situação nos chama de imediato à atenção: o entrelaçamento radical entre vida e obra do filósofo. Situação esta comprovada pelos seus comentadores, tais como: Álvaro Valls; Ernane Reichmann; Charles Le Blanc; Márcio Gimenes; Deyve Redyson e outros. E isto é de muita relevância para uma primeira aproximação entre o filósofo e os cineastas. As raízes luteranas de Carl Dreyer e Ingmar Bergman são as mesmas de Kierkegaard. Uma comprovação de tais raízes em Bergman esta no seu filme “Fanny e Alexander” de 1982, uma película marcadamente autobiográfica em que o cineasta sueco se volta para uma infância (na verdade, a sua própria) e a partir do olhar de uma criança ele narra os dramas das relações com um religioso autoritário. Já em A Palavra, filme de 1955, Dreyer chega colocar na boca de um personagem um tal “efeito Kierkegaard” que teria acontecido com o irmão diante de um comportamento estranho vivido pelo mesmo, sendo na verdade, o filme todo uma “espécie de citação” da filosofia da existência do pensador dinamarquês. Afirmação sustentada por uma referência de André Bazin num texto em que comenta a obra de Dreyer2. O teatro, as relações familiares difíceis, os medos de um Deus tirânico; as hipocrisias são captadas pelas lentes de Bergman e Dreyer, que em muito se aproximam de imagens presentes nas obras de Kierkegaard, bastando pensar em “Temor e Tremor” de 1843.
O pensador dinamarquês, criado dentro dos rígidos princípios da religião luterana, que proclama a natureza pecaminosa do homem e sua irrevogável tendência a se corromper, viveu obcecado pelo sentimento de pecado. Isso não o impediu, durante certa fase da sua vida, de entregar-se a prazeres desregrados, onde o consumo do álcool e a exibição de roupas vistosas e pomposas ocupassem o centro de seus interesses imediatos. Aqui temos mais uma aproximação entre o cineasta e o filósofo, bastando ler as dez entrevistas feitas por três cineastas suecos com Bergman ainda na década de 60 e publicadas no Brasil pela editora paz e terra em 1978. Ainda podemos citar dois acontecimentos bem conhecidos dos leitores de Kierkegaard, a saber, a maldição que supostamente estariam sobre a família devido ao fato do pai ter blasfemado contra Deus nos campos gélidos da Dinamarca devido a uma aflição muito grande. Episódio jamais esquecido pelo filósofo e citado na obra “Diário de um sedutor”. Um segundo acontecimento esta ligado ao rompimento com a noiva e sua estranha explicação para tal fato. À medida que amadurecia suas idéias descobrindo sua vocação para o isolamento, percebeu ser incapaz de adaptar-se à convivência matrimonial, o que o levou a desmanchar o compromisso e viver atormentado com tal rompimento a vida toda, transformando-se numa situação existencial para várias meditações do filósofo. Mas as desventuras de Kierkegaard não se limitaram ao circulo familiar. Embora se mantendo fiel à confissão religiosa na qual foi educado, suas desavenças com a igreja luterana oficial, acusada por ele de ter-se burocratizado, distanciando-se da “religiosidade interior”, fundamental a todo verdadeiro cristão, impeliram-no a entrar em choque com a hierarquia eclesiástica. Os pastores luteranos, protestava, haviam se tornado oficiais dos reis, por conseguinte, totalmente desligados de alguma verdades básicas e históricas do cristianismo. Segundo os comentadores citados, impossível dissociar a filosofia de Kierkegaard das vicissitudes pelas quais passou. Mas, também afirmam os mesmos comentadores, não é menos verdadeiro, também, angústias e inquietações latentes em sua época, que só muito mais tarde se manifestariam de maneira dramática. O pensador dinamarquês pertence ao conturbado e crítico século XIX e de certa forma, sua obra tem as marcas dessa época. Mas é importante fazer jus a uma observação de Álvaro Valls e seus seguidores de que não podemos reduzir a “obra agônica” de Kierkegaard aos acontecimentos pungentes de sua existência. Por isso seria bom evitar conferir um caráter absoluto à crônica biográfica de Kierkegaard, como se fosse uma única leitura possível da sua obra e fazer com isto uma espécie de “método” de leitura de outros filósofos. Ao longo da história do pensamento Ocidental, muitos filósofos padeceram inúmeros infortúnios pessoais, e nem por isso é licito afirmar que suas doutrinas são simples ilustração desses fatos. O nosso destaque na vida e obra de Kierkegaard, num imbricamento dialético importante, se dá a partir de uma brevíssima comparação intencional com a vida de Bergman.
Um outro ponto de partida importante para caracterizar a filosofia de kierkegaard, seria a referencia a obra de Hegel3, cujas as idéias são vistas como opostas as suas. Há referencias a obra de Kierkegaard como sendo uma grande reação ao hegelianismo. Percebemos que inicialmente empolgado, como a maioria dos seus contemporâneos, pelas idéias de Hegel. O pensador dinamarquês logo depois se oporia energicamente ao intento hegeliano de condensar a realidade num sistema. Mediante o sistema, pretende-se explicar o todo, de modo a estabelecer uma visão total da realidade, em seus mínimos aspectos, a partir de determinados princípios que se interligam ordenadamente. A ambição de Hegel, segundo Kierkegaard, foi a de integrar, no que denominou de “idéia absoluta”, toda a realidade do mundo, apreendendo-o no conceito (palavra-chave no vocabulário filosófico hegeliano). O problema central para o filósofo da Dinamarca é que esse processo conduz a um esquecimento do individuo, a ponto de torná-lo desnecessário na “odisséia do Espírito hegeliano”. O individuo seria apenas uma das fases do sistema hegeliano e só. Para Kierkegaard, o individuo não pode ser apenas uma mera manifestação da idéia. O erro de Hegel, sentencia o dinamarquês, foi ter ignorado a existência concreta do individuo. Percebe-se que é daí que nasce uma certa aversão de Kierkegaard ao “espírito de sistema” na sua vontade de explicar a existência (tema central na cinematografia de Dreyer e Bergman). A existência humana, na leitura do pensador dinamarquês, não pode ser explicada através de conceitos frios, de esquemas abstratos. Um sistema promete tudo, mas não pode oferecer absolutamente nada, pois é incapaz de dar conta da realidade, sobretudo a realidade humana. O sistema é abstrato completamente, a realidade é absolutamente concreta. Aqui podemos perceber como Bergman se insere perfeitamente nessa perspectiva filosófica de Kierkegaard. No filme “Luz de inverno” (um dos filmes da trilogia do silêncio) o sacerdote luterano sofre amargamente a incapacidade dos conceitos racionais da sua religião em tentar explicar os fenômenos que lhe afoga a alma e as inquietações dos seus fiéis.
O sistema é racional e só pode ser assim. A realidade é tudo, menos sistema. Eis a base de Kierkegaard, Dreyer e Bergman. No “Diário de um sedutor”, ele escreve que diante de uma situação concreta que enseja solução, mesmo um filósofo tenta resolve-la fora do sistema que se filia. As soluções preconizadas pelos sistemas não são seguidas por seus criadores quando se encontram em apuros. Na vida cotidiana, os criadores de sistema se valem de alternativas diferentes daquelas que recomendam para os outros. Por que esse procedimento? Porque a realidade da qual os indivíduos têm maior conhecimento é sua própria realidade, a única que interessa de fato. Só a realidade singular, concreta interessa, e apenas esta o individuo pode conhecer. Só podemos nos apropriar da realidade subjetivamente. O universal não passa de mera abstração do singular, eis uma marca fundamental da filosofia de Kierkegaard e do cinema de Dreyer e Bergman. O pensamento abstrato só compreende o concreto abstratamente, enquanto que o pensamento centrado no individuo busca compreender concretamente o abstrato, aprende-lo em sua singularidade, capta-lo em sua manifestação subjetiva. O individuo, por isso mesmo, jamais pode ser dissolvido no anonimato, no impessoal. Todo conhecimento deve ligar-se inapelavelmente à existência, à subjetividade, nunca ao abstrato, ao racional, pois se assim proceder fracassará no intento de penetrar no sentido profundo das coisas, logo, de atingir a verdade. Singular é o homem. Contrariamente ao que ocorre entre os animais, o homem singular vale mais que a espécie. Apenas ele tem consciência de sua singularidade. Portanto, o homem é categoria central da existência. A existência individual, assim a concebe Kierkegaard, é para ser vivida, dispensando ter como explicação última algo de racional. Diferente da concepção hegeliana de homem, o dinamarquês exalta o concreto, o singular, o homem enquanto subjetividade. Kierkegaard atribui a si mesmo a missão de defender o singular contra o geral, tarefa que, no “Diário de um sedutor”, compara a Leônidas, herói das Termópilas, a quem coube resistir às investidas do inimigo Persa (KIERKEGAARD, 1979). No caso de filósofo da Dinamarca, não há dúvida, o inimigo é toda forma de sistema.
Se os temas da existência e da singularidade são temas que em muito aproxima Kierkegaard de Bergman, o tema da fé e todas as conseqüências existenciais de um enfrentamento com o tema, leva tal relação a uma situação de influência direta4. Para Kierkegaard, a “verdadeira fé” não está ligada à instituição da igreja ou das igrejas, quanto a um estado de crise existencial constante. Não se trata, como comenta Charles Le Blanc, tanto de ter fé ou de conservá-la, quanto de vivê-la (LE BLANC, 2003). Ser religioso de nascença ou pela educação não nos faz cristãos. Longe de nos contentarmos com uma etiqueta de cristãos porque fomos batizados ou porque somos fiéis, temos que nos perguntar perpetuamente em como se tornar existencialmente cristão (tema central no filme “Luz de inverno” de Bergman, em que um sacerdote protestante vive as voltas com o drama de ser religioso e ter que ter fé e não poder ser do outra maneira. A existência ou não de Deus o atormenta constantemente). O filósofo situa-se nos antípodas de um povo que se satisfaz com um estatuto cristão, e que Kierkegaard qualifica de “pagão batizado”.
A religiosidade da existência tal como Kierkegaard a percebe afirma-se primeiro como reação à concepção totalizante e universal na qual Hegel englobava a existência humana. Se par este último a existência não contava se não como momento de um sistema lógico universal, o pensador dinamarquês entende reafirma a primazia da subjetividade, ou seja, tudo que é próprio de cada individuo e que escapa a toda categoria. Não se pode apreender o espírito religioso que anima Kierkegaard a não ser que se preserve e espírito do domínio do conceito e da categoria, a fim de perceber com toda sua força as questões que emanam da intimidade do homem confrontado ao trágico da existência. A lógica hegeliana torna-se impotente e cai em desuso frente ao sofrimento humano, por exemplo. Pois, como o faz notar Álvaro Valls no seu livro “Entre Sócrates e Cristo”: “O que existe não é o conceito de sofrimento e sim os homens que sofrem” (VALLS, 2001:37). O espírito religioso autêntico é, portanto aquele que experimenta a existência em seu foro íntimo e não mais através do conceito. A fé é para o pensador dinamarquês um elemento fundamental para a existência e para a filosofia. A fé não se reivindica mais, experimenta-se mergulhando-nos numa busca sem fim. Segundo Charles Le Blanc, a “fé autêntica” nos coloca confrontados a um aprendizado da vida que corresponde de algum modo a situações limites de interrogação sobre a própria existência e seus dramas cotidianos (tema explorado em vários filmes de Bergman). Kierkegaard situa a fé a partir de uma espécie de postulado existencial em três estágios: na esfera estética, o homem (a imagem de Don Juan) refugia-se no imediatismo do desejo, no instante, assim como na recusa de toda escolha. Na esfera ética, compreendemos ao cabo de um desespero sem fim, compreendemos ao cabo de um desespero sem fim, que precisamos ir ver além do imediatismo para nos tornarmos o que nos tornamos, ou seja, admitir a existência de uma alternativa no lugar da indiferença ao bem e ao mal, logo, aceder ao reconhecimento do bem e do mal (esse desespero vivido pelo individuo no estágio ético em Kierkegaard, pode ser encontrado no cinema de Dreyer e Bergman na construção de vários dos seus personagens). No cinema de Bergman este estágio ético corresponde aquilo que Susan Sontag num artigo magistral sobre Persona, afirmou: “O que é mostrado no final de Persona assemelha-se a um empate angustiante.” (SONTAG, 1987:124). O que parece irônico na lógica de Kierkegaard é que entramos na esfera religiosa pelo humor e assim libertados do cinismo autodestruidor. Aceitamos, em nome da fé, o peso de uma falta de Homem perante um Deus para com o qual temos uma divida. Sempre em busca da felicidade, e esta nos faltando sempre, temos que admitir esse fato e esperar para além de toda decepção. Marcado e preocupado em responder a questão “que devo fazer?”, Kierkegaard aprofunda, amplia essa interrogação ao extremo, e assimila a paixão à existência: o ser humano mantém-se entre a dúvida e a fé, num estágio de existência fechado que se basta a si mesmo, e no qual só sai por um “salto” (e não por graus de evolução, como pensa a filosofia hegeliana). Como afirma Charles Le Blanc: “Todo homem se encontra necessariamente em uma ou outra esfera da existência e o problema que cada um tem que resolver é determinar em estágio se encontra” (LE BLANC, 2003:58)
É nesta relação entre dúvida e fé que o ponto de encontro entre Kierkegaard e Bergman se torna mais intenso e nítido. Para exemplificar tal afirmação, basta-nos reportar ao belíssimo filme “O sétimo selo” ou, ainda a “Luz de inverno”. Tanto para o cineasta, como para o pensador dinamarquês a relação torturante e angustiante entre dúvida e fé é o essencial da existência, por ser tão irredutível e inevitável. É em face de Deus que o homem experimenta o paradoxo inerente a existência... Aqui estamos no ponto mais alto da relação de influencia de Kierkegaard sobre Bergman. O paradoxo existencial que trabalha Kierkegaard intensifica-se logo que o homem se relaciona com um Deus que o transcende: sem Deus, o homem perde toda significação, e sua busca é desprovida de sentido. Ocorre que se o paradoxo é o lugar onde uma verdade se revela a nós, nossa subjetividade reside não na sua falsidade, mas na sua insuficiência em relação a esse Todo-Outro (Deus) que nós não somos. A existência é e permanecerá sempre falta, uma ascensão inacabada e inacabável. Não cessamos de aspirar uma plenitude enquanto vagamos num meio de uma incerteza infinita; é com esta própria incerteza que nos devemos contentar como verdade. É nesse sentido que Kierkegaard afirmava em “Temor e Tremor” que “Deus está justamente presente logo que a incerteza de tudo é pensada como infinita”. E jamais experimentamos tanto erro da subjetividade quanto logo que nos encontramos remetidos a nós mesmos, numa solidão radical. “O homem Kierkegaardiano, esceve Charles Le Blanc, é antes de tudo aquele que busca um ponto onde jogar a âncora, pois, se se limitar a si mesmo, mostra-se injustificável, sem mensagem, e o mundo em que mora lhe dá náusea” (LE BLANC, 2003:51). Neste ponto é possível perceber, como as imagens existenciais criadas pelo filósofo dinamarquês são muito utilizadas no cinema de Bergman. A filosofia existencial de Kierkegaard é a base para o cinema também existencial de Carl Dreyer e Ingmar Bergman. Como afirma Luiz Gustavo Onisto de Freitas em um artigo dedicado as relações entre Kierkegaard e Bergman: “Da mesma maneira que Bergman prioriza a individualidade de seus personagens no cinema, Kierkegaard concede um papel fundamental ao indivíduo em sua obra” (FREITAS, 2007:323).
2. NOTAS SOBRE O CINEMA DE DREYER E BERGMAN COM INTERESSE EM KIERKEGAARD
Comentar a obra de Ingmar Bergman e Carl Dreyer num espaço de escrita introdutória como esse, torna-se uma tarefa muito difícil. Cineasta de uma vastíssima obra teatral e cinematográfica que vai de 1944 a 2003, Bergman é um dos mais comentados e citados diretores do século XX. Já o diretor dinamarquês, Carl Dreyer é considerado o mais importante cineasta do mundo escandinavo e um mestre de toda uma geração, a começar por Bergman e Laars Von Trier. O nosso intuito é fazer um pequeno recorte na obra de ambos e tentar demonstrar a presença da filosofia de Kierkegaard nessas mesmas obras. Comecemos pela obra de Dreyer.
Considerado um dos maiores realizadores do cinema dinamarquês, Carl Dreyer teve uma carreira internacional. Desde O Presidente, filme de 1920 nota-se um cuidado com a imagem e com um rigor de pensamento, que marcará sua obra posterior e demonstrará sua fonte filosófica na obra de Kierkegaard. O que no filme A Palavra um personagem chamará de “efeito Kierkegaard”. É como se Dreyer se encontrasse inteiro nesse trabalho. Seu segundo filme permite que se acrescente a esse retrato duas pinceladas: o gosto pelo fantástico e uma preocupação por temas religiosos, marcante em sua carreira até o fim da vida. Página do livro de satã inspira-se em Intolerância do americano Griffith. Suas outras obras serão filmadas na Suécia e na Alemanha. Dreyer produziu pelo menos, três grandes obras primas do cinema mundial: O martírio de Joana D´arc (1928); Dias de ira (1943) e A palavra (1955). Para o nosso breve comentário, interessanos as obras de 1928 e 1955, respectivamente. Extraído, em principio de um roteiro, o filme sobre Joana D`arc foi inspirado nas minutas do processo em um arquivo em Paris onde temos os detalhes das acusações e das palavras de defesa utilizada pela virgem de San Remy, mas a ação destacada pelo cinema de Dreyer condensa num único dia segundo um imperativo trágico que de forma alguma falseia5. A Joana D`arc do cineasta dinamarquês permanece memorável nos anais do cinema pela audácia fotográfica. Com exceção de algumas imagens, o filme é inteiramente composto de closes, principalmente rostos. Essa técnica atendia a dois propósitos aparentemente contraditórios, mas, na verdade, intimamente complementares: mística e realismo. Marca importante da filosofia de Kierkegaard no cinema de Dreyer. A história de Joana, tal como nos é contada/mostrada por Dreyer, apresenta-se despojada de qualquer incidência anedótica; é o puro combate das almas, mas essa tragédia exclusivamente espiritual, onde todo o movimento é interior, expressa-se cabalmente por intermédio dessa parte privilegiada do corpo e do rosto. Importa precisá-lo mais uma vez. O ator emprega seu rosto para expressar sentimentos, porém Dreyer exigiu de seus interpretes outra coisa a mais que a interpretação. Vista de tão perto em grande close, a máscara da interpretação cai. Como escreve Robert Bresson, discípulo francês de Dreyer: “A câmara penetra todas as camadas da fisionomia. Além do rosto que se faz, ela descobre o rosto que se tem, visto de tão perto, o rosto humano torna-se documento” (BRESSON, 2005:31). O paradoxo fecundo, o ensinamento inesgotável desse filme é que, nele, a extrema purificação espiritual se entrega ao realismo mais escrupuloso sob o microscópio da câmara e revela a presença determinante da concepção de existência elaborada por Kierkegaard. Dreyer proibiu qualquer maquiagem, os crânios dos monges são efetivamente raspados e foi diante de toda equipe em lágrimas que o carrasco cortou realmente os cabelos de Falconetti (a Joana D´arc de Dreyer) antes de conduzi-la à fogueira. Não se tratava, em absoluto, de uma tirania. Devemos-lhe esse sentimento irrecusável de tradução direta da alma. A verruga, as sardas e as rugas dos acusadores de Joana são consubstanciais às suas almas e significam mais que suas interpretações. A grandeza desse filme kierkegaardiano pode ser resumido numa frase de Charles Le Blanc ao comentar o sentido da fé na obra do pensador dinamarquês: “Ter fé é assumir os riscos que derivam das possibilidades da existência”. Frase que bem define a fisionomia e a decisão firme da Joana D`arc de Carl Dreyer.
A Palavra (1955) é um filme arrebatador em todos os sentidos. As marcas da filosofia de Kierkegaard estão por todos os lados. No tema religioso e angustiante; na crítica de uma certa prática de cristianismo; na fotografia de uma brancura existencial e num acontecimento raro no cinema de Carl Dreyer: é o seu único filme em que há uma citação do nome de Kierkegaard ligado a um acontecimento que marcou a vida de um dos filhos de um velho patriarca camponês da Dinamarca (ambiente da película). Só por essas referências rápidas daria para perceber a influencia determinante da filosofia da existência de Kierkegaard no cinema de Carl Dreyer. Mas percebemos que a influencia vai além de algumas citações ou semelhanças temáticas. Esta na própria estrutura formal do estilo de Dreyer. Ele incorpora Kierkegarrd e faz da sua obra argumento de roteiro no intuito de melhor trabalhar um determinado tema.
A Palavra é uma adaptação de uma peça de Kaj Munk, um pastor-dramaturgo bem conhecido nos paises escandinavos que morreu em 1944, assassinado pelos nazistas. A Palavra foi criada em 1932 e seguramente, o argumento dramático esta ligado aos costumes religiosos escandinavos, bem temperado com referencias filosóficas e teológicas retiradas da obra de Kierkegaard. Tentemos resumir essa ação dramática em que a “banalidade cotidiana” se acha estranhamente desnaturada pela presença ambígua do sobrenatural. Ela parece passar-se numa fazenda do interior da Dinamarca. O velho fazendeiro tem três filhos, dentre os quais o mais velho, se casou com uma bela jovem que lhe deu duas filhas e que esperava um bebê. O mais jovem, que desposar a filha de um pequeno alfaiate da aldeia que dirige um grupo religioso protestante fervoroso, cuja influencia se opõe à do fazendeiro patriarca, homem piedoso, mas defende um cristianismo mais alegre e menos rigoroso. Sua rivalidade religiosa é complicada por uma certa animosidade social. Quanto ao seu segundo filho, Johannes, é o grande tormento da família. Regressando atormentado de uma experiência em um seminário luterano em que descobriu a obra de Kierkegaard onde passou a criticar violentamente a religiosidade protestante, mas sem se desligar do cristianismo, querendo apenas uma vida cristã sem as hipocrisias dos rituais sem piedade e seriedade, Johannes passa afirmar que uma das coisas mais tristes é “um cristianismo indiferente” (bem ao estilo Kierkegaard nas lentes de Dreyer). O grande tormento da família torna-se mais grave quando Johannes passa a comportar-se como se fosse a “encarnação de cristo” e começa a profetizar nos campos da redondeza. A partir daí uma desgraça abate-se sobre essa gente. A mulher do irmão mais velho, dá a luz penosamente um natimorto e em seguida também morre. O atormentado Johannes, que “profetizara” várias desgraças, foge no meio da noite. Quando, enfim, chega a hora de fechar o caixão, Johannes aparece, aparentemente curado, para repreender os homens de pouca fé por não terem pedido a Deus para devolver a vida à morta. Sua sobrinha mais nova vem pedir-lhe para fazer um milagre e, em nome da fé dessa criança, Johannes pronuncia as palavras bíblicas da ressurreição. Deixemos aos interessados o final da película e a incerteza extraordinária, prolongada por Dreyer. Limitemo-nos a dizer que ele não se presta a atenuar a estranheza da história. Certamente, se refletirmos bem, o desfecho de Joana D´arc não tampouco banal, mas tem a seu favor a força da “lenda” e o recuo da história. Quanto a Dia de ira, Dreyer não teria muita dificuldade para nos fazer admitir a realidade do além numa época em que tanto se acreditava nela. Todos esses recursos são recusados pela atualidade da peça de Kaj Munk; e, de resto, é do realismo mais direto, às vezes mais brutal, que ele pretende falar. De um certo ponto de vista, A Palavra pertence a uma estética quase naturalista. Mas essa matéria dramática realista é como que iluminada de dentro por sua realidade última. Essa imagem impõe-se por si mesma pelo uso que Dreyer faz da luz. A encenação de A Palavra é a principio uma espécie de “metafísica do branco”. Um branco que esta na base , e que é sua referencia absoluta. É o branco que constitui a cor da morte e a cor da vida. A Palavra é, de certo modo, o último filme em preto e branco, aquele que fecha todas as portas para o limite do uso do branco. Um elemento nos filmes de Dreyer e, em especial em A Palavra, nos informa de uma presença decisiva da obra de Kierkegaard no seu cinema: num universo cinematográfico atento ao mistério, o sobrenatural não surge do exterior. É pura imanência. Ele revela-se, no limite extremo, como ambigüidade da natureza, e antes de tudo, no caso di filme, como ambigüidade da morte. Nunca no cinema, nos afirma André Bazin, “a morte foi abordada de tão perto, ou seja, ao mesmo tempo em sua realidade e em seu sentido”. A Palavra é uma espécie de tragédia teológica, sem a menor concessão ao terror... Nada mais Kierkegardiano.
Passando a Bergman, podemos afirmar que o que o que de chofre nos chama a atenção é a maneira como o cineasta sueco trabalha temas delicados e de forte carga existencial, tais como: o escândalo erótico; as polaridades de violência e impotência; a razão e o absurdo; a linguagem e o silêncio; o inteligível e o ininteligível, tudo isso soa ainda hoje por demais estranho e carregado de problemas para uma compreensão linear do que foi entendido como uma narrativa clássica no cinema moderno.
Ingmar Bergman é considerado hoje o ponto mais alto do cinema sueco e o mais conhecido cineasta do mundo escandinavo juntamente com Carl Theodor Dreyer e Laars Von Ttrier (cineasta contemporâneo marcado profundamente pela filosofia de Kierkegaard). A produção cinematográfica de Bergman vai de 1946 a 2003, intercalada com uma série de trabalhos no teatro e na televisão. Nosso comentário à obra de Bergman esta baseado em dois textos muito importantes. Um trata do cinema sueco e sua base psicológica, intitulado: “O realismo psicológico: herança literária do cinema sueco” de Rude Waldekranz (crítico do instituto sueco de cinema), texto este que nos informa da influencia da filosofia de Kierkegaard no cinema sueco e de um modo geral no cinema escandinavo como um todo. Afirma o crítico: “Bergman fez da alma o centro da ação, dando assim ao filme uma nova dimensão, que até então lhe faltava: a profundidade psicológica” (WALDEKRANZ, 1969:55) e ainda numa outra frase esclarecedora: “Disseca a verdade até ai oculta, revelando o verdadeiro rosto do ser humano, que, impiedosamente, põe a descoberto” (WALDEKRANZ, 1969:56). Dessa forma, podemos afirmar que Bergman provou de maneira brilhante que a arte cinematográfica poderia se constituir num meio de expressão extremamente pessoal de trabalhar as imagens e a narrativa. Um outro texto é do próprio Bergman, intitulado Imagens (1990), espécie de diário de trabalho do cineasta sueco onde através de uma leitura crítica de seus próprios trabalhos e de suas influencias intelectuais, nos informa que a presença de Kierkegaard no cinema escandinavo (Suécia e Dinamarca) tem inicio com a obra de Carl Dreyer (que fazia filmes centrado na expressão facial e dramática dos atores e atrizes), passando por ele próprio e chegando ao (então jovem cineasta) Laars Von Trier. Nesse cinema visto pelas palavras de Bergman é possível perceber um elemento importante da filosofia de Kierkegaard, a saber, que o individuo na sua singular existencia deve fazer uma opção decisiva, pró ou contra a uma “forma existencial”. Este cinema nos mostra que não há neutralidade no ato de existir. Na dramática expressão facial da Joana D´arc de Dreyer diante dos seus algozes; nas dúvidas e angústias dos personagens da trilogia do silêncio de Bergman ou na pureza irônica dos personagens principais de Os idiotas ou de Dançando no escuro de Laars Von Trier, existir já é posicionar-se.
A titulo de conclusão, destaquemos na chamada “Trilogia do silêncio” de Bergman, dois filmes que podem nos servir como uma espécie de lugar privilegiado de onde podemos observar com mais nitidez a influencia do pensador dinamarquês. A trilogia foi elaborada por Bergman entre 1960 a 1962 e é composta pelo filmes: “Através de um espelho”; “Luz de inverno” e “O Silêncio”. Um tema fundamental que une a trilogia é a situação de personagens problemáticos, vivendo situações de dilaceramento. É a loucura da protagonista de “Através de um espelho”; a falta de fé e a rotina angustiante de um pastor em “Luz de inverno” ou a incapacidade de comunicação de duas irmãs em “O silêncio”.
Comecemos pela película “Através de um espelho”. Segundo Susan Sontag, a dificuldade desse filme deriva do fato de Bergman não oferecer nenhum tipo de sinalização nítida para separar fantasia de realidade, como por exemplo, o faz L. Bunuel em “A bela da tarde. O cineasta espanhol coloca as pistas, quer que o espectador seja capaz de decifrar o filme. A insuficiência das pistas oferecidas pelo diretor sueco pode ser tomada como indicio de que ele pretende que o filme permaneça parcialmente codificado. O espectador pode apenas aproximar-se, mas nunca atingir a certeza sobre a ação. Entretanto, esta distinção entre fantasia e realidade tem pouca utilidade para a compreensão de “Através de um espelho” e para o tipo de cinema de Bergman. Dos quatro personagens da película de 1960, é Karin o centro da narrativa. Bergman a apresenta como uma pessoa atormentada pela loucura que lhe tira a completa lucidez. É com essa personagem que a distinção entre fantasia e realidade perde sua importância. Por exemplo, Karin confessa ver e acreditar num “Deus-aranha”, que com suas teias vai lhe puxando pouco a pouco para si, sem se importar se as outras pessoas (pai, irmão e marido) acreditam ou não no “deus-araquinídeo”. Aqui a divida de Bergman para com Kierkegaard se mostra pelo uso da “comunicação indireta”. Na personagem Karin esta uma metáfora da idéia de que um ser humano viu o que significa existir. Na sua personagem, Bergman se realiza como num pseudônimo ao afirmar o caráter indeterminado das suas interrogações importantes a respeito do individuo, pois, tanto revela quanto esconde os diversos momentos dessa existência louca e lúcida da personagem Karin. Em “Através de um espelho”, Bergman nos põe a pensar à semelhança dos personagens-pseudônimos de Kierkegaard.
Já em “O silêncio”, o diretor sueco chega ao ponto mais alto da trilogia, ao trazer uma carga de agonia pessoal quase profana na luta na luta vivenciada pelas duas personagens irmãs, Ester e Ana. Quase profana, porque Bergman nunca se separa completamente do Sagrado (a semelhança de Dreyer). A viagem das duas irmãs a uma cidade desconhecida de nome inventado chamada “Timoka”, é na verdade à imagem e o conflito existencial entre duas pessoas unidas para sempre pelo sangue, mas desunidas completamente na relação de cada uma com o mundo que as circunda. Ester é a escritora e tradutora de grande força intelectual, mas desamparada emocionalmente. A razão não lhe salva e a coloca cada vez mais longe do que ama (no filme, Bergman deixa entrever uma relação erótica entre as irmãs, que vai do desejo ao desespero). Ana é a revoltada e fútil, que radicaliza sua relação com o mundo, numa espécie de “imediatismo da natureza” (SONTAG, 1987:122), muito próximo ao “estádio estético” definido por Kierkegaard. Num desfecho extraordinário, Bergman nos deixa a sua mensagem kierkegardiana: depois de romper com o mundo sufocante, o ser humano de fé (a presença constante da música de Bach não é gratuita e sim uma metáfora dessa fé) volta para o mundo, recebe-o de novo, mas com a diferença de estar plenamente consciente de que há uma outra realidade que pede sua opção existencial. Sabe, agora, a personagem Ana que, para alcançar uma existência sem truques, é necessário conciliar o incondicionado e o relativo. Eis a divida fundamental que Bergman paga ao pensador dinamarquês.
EXCURSO. SOBRE O CINEMATÓGRAFO DE ROBERT BRESSON: NOTAS*
Robert Bresson (1907-1999) foi um cineasta de “estranha” cinematografia e de comportamento “esotérico”. Elaborou uma teoria para explicar sua maneira de entender o cinema, a ponto de criar conceitos (sentido dado por Deleuze) numa tentativa de justificar a sua compreensão de imagem. Um cineasta profundamente marcado por uma visão católica influenciada pela filosofia de Blaise Pascal, pensador francês do século XVII. Pascal não é uma espécie de “catequisador” ou um desses vulgares apologeta do catolicismo. O seu pensamento quer conduzir o leitor pela mão até ao limiar em que este pode torna-se capaz de aceitar o que nem os homens e nem as coisas lhe tinham até então mostrado. É este não-mostrado, mas sedutor que transforma a filosofia de Pascal em uma “paixão” e por isso um “pensamento trágico” que nos indica uma “Fé”, que por ser Fé, não nos demonstra nenhuma certeza. Em Pascal, Bresson encontra uma grande chave para o seu cinematógrafo. Nem possuidores do verdadeiro nem dele despojados, não devemos viver apenas para as esperanças em que marcamos encontros com o tempo. Devemos viver em e pela esperança que nos abre para aquilo que a vida sócio-política não nos oferece completamente, assim pensam o filósofo Pascal e o cineasta Bresson. A filosofia de Pascal e o cinematógrafo de Bresson nos apontam uma exigência que se encontra para além da filosofia no sentido tradicional do termo e que, por conseqüência, não teria como matar a sede que o exercício filosófico e cinematográfico implicam e nos interpelam. Um cinema que na forma e no conteúdo é marcado por uma austeridade sem precedentes na história da sétima arte. Pouca música, ou quase nenhuma, poucos recursos técnicos e uma maneira quase mística de dirigir atores (por ele chamados de “Modelos”). A artificialidade do bom ator não serve para o estilo de Bresson. Numa tentativa de explicar o quase inexplicável, Bresson escreveu o seu texto “Notas de um cinematógrafo” em 1975. Texto escrito num estilo aforismático, o que nos faz lembrar os “Pensamentos” de Pascal, os escritos dos “Moralistas” do século XVII, Kierkegaard, Nietzsche e Th. Adorno na sua “Mínima Moralia”. O que torna difícil a leitura do texto aforismático de Bresson é a sua “capacidade criativa” no sentido definido por Deleuze para definir o “filósofo” como criador de conceitos. A arte cinematográfica de Bresson é “criação”, é “epifania”, é “revelação”, e explicar estas coisas em imagens é algo extremamente difícil e que muitas vezes frustra o expectador comum de um cinema comercial e nada revelatório. Apesar de seu caráter fragmentário, a teoria de Bresson apresentada sob o nome de “cinematógrafo” é muito coerente e nos força a ver a idéia de cinema numa ótica nunca pouco vista e pouco comentada por estudiosos ou cinéfilos de plantão.
A arte cinematográfica no seu sentido “tradicional”, só existe em virtude da intencionalidade manifestada por um cineasta, senhor, a um só tempo, de seus meios e objetivos. No entanto, para Bresson não se trata de ter intenções particulares, mas uma intencionalidade geral (a intenção de criar uma obra, como afirma Deleuze); ele preconiza uma espécie de intenção da ausência de intenção. A intencionalidade ganha, então, uma forma particular, a da ignorância, do desconhecimento, da espera, e daquilo que ele mesmo chama de “improvisação”. Quanto ao artista, ele o caracteriza pela perspicácia e pelo saber das relações a serem estabelecidas entre os dados sensíveis.
Um conceito complicado no texto Notas de um cinematógrafo é o de verdade. Se o teatro e o cinema são a “arte do falso”, ou como afirma Deleuze “as potencias do falso”, o cinematógrafo de Bresson define-se pelo valor oposto: seu poder de verdade. O cinematógrafo é instrumento de revelação de alguma coisa mais profunda do/no mundo, instrumento de ver e compreender. Entretanto, a arte de Bresson se concentra em um “objeto” de verdade e único: o sujeito humano. É, em particular, o sentido de sua teoria do “Modelo”, que designa não a relação de um filme com um ator, que encarna uma personagem, mas o trabalho de uma “certa verdade” a ser dita sobre esse ator, esse corpo e esse sujeito, singularizando a forma pela qual essa verdade se produz. O cinema/cinematógrafo para Bresson tem uma capacidade única
de revelar o real na sua inteireza e na sua sacralidade austera e, por isso, absolutamente simples como a vida de todo Ser.
O cinematógrafo procura uma expressão não imediata (mas mediata) e não definitiva, mas constantemente deslocada, relançada, contradita. O cinematógrafo lida com a escritura, ou seja, com a criação de relações entre imagens e som. Ele é paradoxal, já que é definido como, a um só tempo, intimo e separado. Imagens visuais e sonoras, ligadas e separadas, referidas ao real: o cinematógrafo é a escritura desse material. Como escrever com imagens e com sons? Não é, certamente, intervindo sobre cada imagem para carregá-la de sentido escrito, mas intervindo unicamente sobre o agregado de imagens. Não há imagem a-significante e que não atraia a atenção por suas qualidades, assim entende Bresson.
O cinematógrafo de Bresson se define, portanto, por combinação singular e paradoxal de vários traços acentuados: o imprevisto, o instintivo, o inesperado, a emocionalidade fria, a absorção do espectador, a intenção de verdade, a crença no real, e por fim, um poder próprio dessa máquina que é, ao mesmo tempo, instrumento e escritura. Assim é Robert Bresson e o cinema por ele feito de maneira extra-ordinária e com uma poética absolutamente singular.
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